Sobre música do mundo e música do (sub, sobre, extra, fora, ex, para
outro?) mundo
por Bráulia Ribeiro
Conheci pessoalmente Don Richardson, missionário na Papua-Nova Guiné,
autor do best-seller O totem da paz. Homem humilde, amigo e que honra
o trabalho que nós brasileiros fazemos entre os índios do Brasil.
Certa vez, numa entrevista particular, meu marido lhe perguntou: "Se
você tivesse de começar de novo, o que faria de diferente no seu
ministério entre os sawis?" Uma pergunta delicada, na verdade um
eufemismo para "Qual foi o grande erro que você cometeu e que não
repetiria se tivesse uma nova oportunidade?"
Ele pensou, pensou, o que foi um bom sinal. Para um homem com um
ministério tão bem-sucedido, mundialmente conhecido, deve ter sido
difícil lembrar de algum erro... Finalmente ele disse: "Duas coisas:
primeiro, eu não teria traduzido corinhos da igreja indonésia para a
igreja sawi; segundo, teria usado dramas em vez de pregação falada
para ensinar o Evangelho".
Pode parecer pouco para os não-iniciados, mas para os que são da área
foi a admissão de um grande erro. Ele estava dizendo que teria
introduzido o Evangelho numa forma cultural sawi e não na forma
estrangeira. A maneira de cultuar e pregar usada pelos sawis, 70% dos
quais são cristãos, é estrangeira. Eles louvam da forma indonésia.
Talvez até saibam cantar "sim, Deus é bom" na sua própria língua.
Vamos sempre em cultos missionários, tristes a meu ver, quando se
canta "yes, God is good", "sim, Deus é bom", e por aí afora em muitas
línguas, com uma alegria burra, crendo que o grande propósito de Deus
para o universo humano é formar na terra uma imensa e uniforme igreja
evangélica.
O erro que Don cometeu os que primeiro nos pregaram o evangelho também
cometeram. E continuamos cometendo, nós, líderes cristãos do Brasil de
hoje. Durante um encontro nacional de Jocum (Jovens Com Uma Missão) —
que se crê vanguarda e, às vezes, é mesmo vanguarda em alguns aspectos
— na frente de quase 1.000 jovens, liderando uma reunião, pedi que a
equipe de louvor tocasse "Velha Infância", dos Tribalistas, para
louvarmos a Deus com intimidade. Minha sorte foi que muitos dos
líderes presentes não souberam que fui eu que encomendei a música,
senão provavelmente eu teria sido proscrita da função de presidente
nacional poucas horas depois de ter assumido. Ao mesmo tempo em que a
música trouxe um espírito doce e especialmente terno para toda a
platéia, e encheu de alegria a boca e o coração dos jovens presentes,
a casa caiu para o líder de louvor, e ele teve de enfrentar muitas
caras feias até o último dia...
Quando prego em congressos, gosto de tocar "Um Índio", de Caetano
Veloso, e "Maria Maria", do Milton Nascimento, que considero músicas
essenciais no entendimento de nossa identidade brasileira.
Infelizmente, nosso "Jesus" evangélico não é brasileiro. Ele é
internacional, e por internacional leia-se americano-europeu do norte.
Este "Jesus" fala inglês, louva medievalmente para algumas
denominações e hosana-music-vineyardmente para outras. Mas, como um
religioso fariseu, coloca-se sempre à parte da cultura, acima dela,
desprezando-a completamente em vez de restaurá-la, redimi-la,
legitimá-la, comunicando-se com ela. Este "Jesus" fariseu-evangélico
ora pelas praças usando shofares (o que é isto?), proclamando-se santo
e desprezando tudo e todos ao seu redor. Fala num jargão de gueto
cultural, comunica-se apenas com seus "iniciados" e sua mensagem é
obsoleta e irrelevante para a população em geral.
Um dia, numa conferência, ouvi um pastor repreender em nome de Jesus
"a cultura africana de nosso meio". Coisa triste. Não me admira que na
Bahia cresça tanto o número de negros que buscam sua legitimação
étnica no candomblé. Formas culturais, danças, músicas não são
pecadoras ou santas em sua essência. São formas, vasilhas, caixas nas
quais se depositam as bênçãos de Deus, ou as maldições... Na mesma
conferência me deram 20 minutos para dizer algo. Num acesso de loucura
pintei a cara de índia e disse que ainda veria o mesmo povo louvando
ao som de centenas de tambores baianos numa timbalada poderosa e
santa. Queixos se deslocaram do lugar, cabelos se arrepiaram de
horror, mas inúmeras pessoas se sentiram "misteriosamente" livres para
amarem quem são, suas músicas, suas danças, curtirem MPB e dançarem
danças africanas em homenagem ao Deus que criou todos os povos.
Baby do Brasil, durante uma conferência, me disse que viu,
"pentecostalmente" falando, o Espírito de Deus de maneira maravilhosa
ungir a música "Brasileirinho" e centenas de pastores do G-12 dançarem
enlouquecidos ao som do chorinho-símbolo do Brasil... É o fim dos
tempos? Além de "G-12mente heréticos", esses pastores agora também se
"secularizaram" de maneira perigosa? Ou será que a revelação de que
Deus ama a nós, brasileiros, como somos, em todas as nossas
manifestações culturais, está chegando até os segmentos mais
inesperados do Evangelho no Brasil?
Fico com a última opção. Deus é amor. Não é fariseu, exclusivista,
preconceituoso, racista. E, além de tudo, só nós ainda não sabemos...
Mas Deus é brasileiro.
Bráulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, e presidente da
JOCUM — Jovens com Uma Missão.
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